A cabeça, chamada pela tradição jeje nagô de ori, goza dentro das religiões de matriz africana, de importância e significado particular, sendo desta maneira, motivo de adoração.
A ela são dedicadas cantigas especiais, oferecidas comidas em certas ocasiões, ao mesmo tempo em que é adornada como forma de reconhecimento e distinção. Este culto individual talvez seja o que mais conseguiu preservar elementos do islamismo no momento em que as religiões afro-brasileiras, a menos aquelas influenciadas pelo chamado modelo jeje nagô, foram constituídas.
Desta maneira, num complexo ritual que se desenrola protegido dos olhares curiosos, podemos em algumas casas de candomblé, ver alternando-se palavras islâmicas com iorubas, atestando o longo diálogo que desde cedo estas duas religiões estabeleceram. Como no extinto candomblé mussurumi, o culto a cabeça começa a desenrolar-se no por do sol para que antes do dia seguinte possa está concluído.
No culto a Ori, é ressaltada a sua antiguidade e precedência aos próprios ancestrais, ideia elaborada observando a vida que se desenvolve no útero, na ocasião em que a cabeça é a primeira que pode ser contemplada. Desta maneira, ela não faz parte do corpo, mas representa o corpo inteiro. Corpo mítico, ancestral, do qual nada mais somos do que seu deslocamento.
Esta filosofia permite nos colocar em confronto com saberes que não apenas fragmentaram o corpo, mas também limitaram a inteligência à cabeça. O culto a ori ao remetermos às nossas origens nos permite inicialmente conceber esta faculdade de significar, entender as coisas, que assim sendo, deve ser entendida no plural- inteligências- como algo que pertence a todo Universo, do qual somos parte. Afirmar que a cabeça é anterior aos orixás e por isso ela deve ser adorada primeiro, nos convida a refletir sobre a nossa participação no mundo como algo integrado; assim sendo, a inteligência não pode ser concebida como algo que esta limitado a uma parte do corpo, mas a todo corpo como algo que faz parte do universo.
Nos terreiros de candomblé, muitas são as estórias que tentam ilustrar a importância do ori para as pessoas, dentre elas a que lembra um período em que estas não tinham cabeça e vagavam sem direção, até o dia em que um determinado rei, a fim de tornar o seu reino próspero, resolveu consultar Orunmilá, o velho adivinho, que prescreveu como oferenda, além de outros elementos, frutas redondas de todos os tipos. E assim foi feito. Chegado o momento exato para realizar a oferenda, não tendo como levar tudo que havia providenciado à presença de Orunmilá, Exu, o mensageiro, ofereceu ajuda. Sugeriu que sobre os ombros das pessoas fosse colocado uma rodilha, espécie de roda feita com um tecido torcido, que quando que fixou-se nos ombros transformou-se logo no pescoço. Em seguida, assim que a primeira fruta foi colocada sobre a rodilha, prendeu-se a ela e assim foi se sucedendo com toda a humanidade que a partir de agora havia ganhado uma cabeça.
Afirma-se também nos terreiros que a cabeça é a síntese de nossas possibilidades, conceito que já abordamos, chamado destino, entendido como um conjunto de condições a partir do qual devo orientar as minhas ações e a minha vida para ser feliz e agir sempre certo, ou de acordo com o meu caminho, ou melhor, com as escolhas que faço diante do leque de possibilidades que me deparo a todo instante.
Acredita-se também que é um artesão, chamado Ajalá quem modela as cabeças a partir dos elementos da natureza. "Cabeças que são distribuídas aleatoriamente.” Todavia, cabe à Yemanjá, cuidar de todas as cabeças, razão pela qual recebe o título de Iyá ori "mãe das cabeças". Yemanjá, a mesma que toma conta das contas que os iniciados levam no pescoço, não permitindo que elas se quebrem e que mantém o equilíbrio das teias.
Por Vilson Caetano Jr | Antropólogo